Profa.
Ma. Inês Cardin Bressan[1]
Flávia Taciane do
Nascimento[2]
Joana Pereira
Repinaldo[3]
Resumo: O projeto Evocações do Passado: Memórias de Procopenses, desenvolvido pelo
Grupo de Pesquisa EDITEC – da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, traz
à lume histórias de pessoas que nunca tiveram a pretensão de serem escritoras,
mas que, através de seus relatos, estão resgatando a memória da cidade de
Cornélio Procópio, com enfoque em aspectos da cultura da região. Desse modo,
apresentamos nesse artigo a entrevista com a dona de casa Ana Maria Cardin, que, com seus oitenta e um anos, ainda guarda
nitidamente acontecimentos de sua vida, expostos neste texto, e que fazem parte
de eventos vividos também por outros munícipes.
Palavras-chave: História Oral. Memórias.
Relatos. Ana Maria Cardin.
INTRODUÇÃO
Este artigo é um
estudo sobre as memórias procopenses, com foco especial em uma de suas
moradoras, a Sra. Ana Maria Cardin. Ele é resultado de um trabalho realizado
pelas pesquisadoras supracitadas, a fim de resgatar a memória da cidade de
Cornélio Procópio – Pr, que faz parte do conjunto de trabalhos realizados pelo
Grupo de Pesquisa EDITEC, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Criado em 2008, o grupo EDITEC tem como foco
estudos sobre as relações entre educação, sociedade, arte e tecnologia, com as
linhas de pesquisa: Diálogos Culturais; Educação profissional e trabalho. Ao
longo desse período foram realizados alguns trabalhos e projetos e entre eles
está o “Evocações do Passado: memórias de procopenses”, que busca justamente
resgatar a memória das pessoas que viveram e ainda vivem nessa cidade.
Justifica o seu desenvolvimento,
o fato de haver certa necessidade de se conhecer o espaço em que se vive, e é
através da história que se resgata a memória e a vida de uma sociedade. Seu
objetivo é trazer à luz alguns dos modelos de vida de épocas passadas, cujos
moradores ainda estão vivos e mostrar que a narração de um fato, seja ele histórico
ou não, é capaz de resgatar a memória de um povo, perpetuá-la e também
emocionar os agentes envolvidos nela. Por isso, esse artigo se dispôs a relatar
a história da Sra. Ana Maria Cardin e, através dele foi possível conhecer
melhor como se enredava a vida das pessoas há quarenta anos, bem como tomar
ciência de como elas se organizavam dentro da cidade de Cornélio Procópio, sob
o viés de uma moradora, que havia recentemente chegado aqui e construía uma
família. Desse modo, a partir da literatura oral que se edifica e atrai novos
pesquisadores, foi exposta aqui a experiência de uma senhora de oitenta anos.
Segundo Coutinho
(2003), a literatura oral, além de existir em todas as bibliografias, é o
elemento vivo e harmonioso que envolve a criança e acompanha, sem cessar, o
homem, num eco de memória e saudade. O autor considera todos os seres humanos
como portadores de material rico e complexo, recolhido durante toda a vida,
desde a infância até a maturidade, arquivado na mente de cada um. A história
contada e recontada durante muitas gerações sofre modificações, por isso a
importância de projetos que retomam a memória e buscam a história de
personagens, muitas vezes, desconhecidas.
D. ANA MARIA CARDIN: ACONTECIMENTOS SOB OS QUAIS A VIDA ACONTECE
Ao enriquecer uma
pesquisa com depoimentos de pessoas idosas, consequentemente atribuímos valor à
sua memória e, essa atribuição funciona como mola propulsora para o resgate da
vida. Normalmente, os velhos não são muito bem integrados à vida moderna e é na
família, construída por ele, que acaba encontrando um espaço para ficar e
acomodar a sua vida. Não é difícil encontrar aqueles que moram com os filhos,
outros que insistem em sustentar suas atividades morando sozinhos, ou aqueles
que foram relegados a asilos ou casas de repouso. A juventude, ansiosa pela
vida, desfavorece os idosos e poucos consideram suas opiniões, suas falas e
suas memórias.
A velhice, decurso
fatal daqueles que não morrerem jovens, é tão desvalorizada que chega a
assustar os mais destemidos. Muitas vezes, abandonados nos asilos pela própria
família, o idoso já não possui papel ativo. Ele se resigna na sua condição
passiva.
Segundo Bosi (1994,
p. 83), “o velho é alguém que se retrai de seu lugar social e este encolhimento
é uma perda e um empobrecimento para todos. Então, a velhice desgostada, ao
retrair suas mãos cheias de dons, torna-se uma ferida no grupo”. No entanto, há
aqueles idosos que, integrados na vida familiar, convivem harmoniosamente com a
sua geração. E são por vezes, sob a visão dos jovens, estranhos e curiosos
porque passam muito tempo com o olhar absorto, aquele olhar sem ver, que
insiste em buscar amparo em abstrações e ausências.
A faculdade de
escutar esvaiu-se no mundo moderno. Todos querem falar, todavia o escutar é para
poucos. Por isso, entre o ouvinte e o narrador nasce uma relação de intimidade,
pois as lembranças narradas mostram não apenas fatos, mas memórias silenciadas
pelo tempo que passou e pelo desinteresse da juventude. Uma das formas de
preservar as memórias e a história da literatura é o gênero narrativo, pois
através dele se perpetuam as histórias que a vida ofereceu e oferece.
A narração, forma
artesanal de comunicação, tece o acontecido até atingir a forma desejada. A
história precisa ser narrada e desse modo passada de geração a geração e gerar
tantas outras prolongando o original tecidas por outras mãos, por outros dedos,
por outros lábios. “A arte de narrar é uma relação alma, olho e mão: assim
transforma o narrador sua matéria, a vida humana” (BOSI, 1994, p.90).
Foi em uma tarde
amena de abril que a Sra. Ana Maria nos recebeu em sua casa. A entrevista
prolongou-se por toda a tarde, mas o tom acolhedor da residência, associado aos
crochês das toalhinhas dispostas, nos remeteram a um tempo de infância que já
não volta mais. A boa integração com filhos e netos manteve nela a alegria de
viver e um sorriso contagiante. Sentamo-nos no escritório e ela, um pouco
ansiosa, aguardava as perguntas, não antes de nos oferecer uma xícara (ou
chávena?) de chá. Após o chá e explanado mais ou menos qual seria o viés da
entrevista, ela iniciou a narrativa.
“Vim para Cornélio
Procópio em 1952, sou natural de Guaiçara – SP e em 1954 me casei com Pedro
Cardin. A cidade não possuía asfalto e as ruas eram de uma terra tão vermelha
que nos surpreendia. Provenientes do Estado de São Paulo, onde a terra era
branca e o clima mais quente, assustávamo-nos com a ventania, com o frio e
também com a poeira (risos). Juntamente com meu marido, vieram os ternos de
linho branco que, após algumas voltas pela cidade, teimavam em parecer mais com
marrom claro que propriamente brancos. A cidade deveria se chamar Ventania e
não Cornélio Procópio (risos). As minhas roupas eram simples vestidos
estampados de xadrez, floral e também eu não frequentava salão de beleza. Só
para cortar os cabelos mesmo. Sempre cantei em casa fazendo o meu serviço. As
músicas eram sacras voltadas para Jesus e Nossa Senhora. Certa vez, uma vizinha
me disse que havia mudado perto dela uma família de passarinhos (risos).
Eu e o Pedro tivemos
seis filhos e ele passou a maior parte do tempo de sua vida trabalhando na
Santa Casa. Seu trabalho nos fez mais cuidadosos com os filhos, pois devido à nossa
baixa escolaridade, tínhamos poucos conhecimentos sobre cuidados com a saúde, o
que foi aprendido na função dele. Se faltavam conhecimentos em determinados
campos, abundavam em outros: a religião e o carinho!
Meu marido era
enérgico, bom esposo e bom pai. Religioso ao extremo e eu o amava por isso, não
só por isso, mas pelo seu aspecto pedagógico que tinha em me ensinar. Aprendi
muito com ele. Como vim de uma família um tanto quanto rude na criação dos
filhos, tentei fazer diferente com os meus. E deu certo! (risos).
Nunca fui festeira.
Nem eu nem o Pedro. Nosso divertimento era ir à Igreja, procissões, quermesses
e visitávamos nossos vizinhos e compadres. Não havia ostentação, nem
poderíamos, mas havia calor humano de sobra. Rezávamos o terço todos os dias
(ainda rezo) e o fazíamos ajoelhados. Era bonito de se ver as crianças por
vezes ajoelhadas fazendo as suas orações.
Íamos à igreja todos
os domingos e eu ia quase todas as quartas assistir à novena da Nossa Senhora
do Perpétuo Socorro, na catedral, ou melhor, ainda era matriz. As procissões
também eram belíssimas. Tinha a procissão de Corpus Christi, na qual
enfeitávamos as ruas para passar o Santíssimo. Muitas vezes minhas filhas se
vestiam de anjinhos para acompanhar a procissão, ou também para fazer a
coroação de Nossa Senhora no mês de maio, com as Irmãs da Santa Casa. Eram
momentos de muita riqueza espiritual e também familiar. Em Corpus Christi, as
ruas eram enfeitadas e a procissão dava volta no Cristo e retornava para a
Catedral, voltávamos bem cansados, mas com a sensação plena que só a presença
de Deus pode nos dar. O Pedro sempre ajudava nas missas, uma espécie de
coroinha adulto, e nós ficávamos observando ele lá no altar junto com o padre.
Como eu sempre gostei de cantar, eu cantava o dia todo fazendo o meu serviço.
As músicas eram da Igreja, “Confio em Nosso Senhor”, músicas voltadas para
Nossa Senhora e com o tempo meus filhos aprenderam também. Com a chegada de um
toca discos em casa fomos adquirindo LPs de Padres que iniciavam suas vidas
como cantores, como o Padre Zezinho, com o LP Ágape. Nossa afinidade com os
sacerdotes sempre foi boa, acho que porque o Pedro teve um irmão Padre e ele
foi muito importante para nós todos. Tanto que foi o Padre José Canziora que
ajeitou o trabalho na Santa Casa para o meu marido.
O Pedro trabalhava de enfermeiro
na Santa Casa e depois de muitos anos passou a fabricar soro. Ele era muito bom
no que fazia. Puncionava veias como ninguém e era comum ele chegar a nossa casa
dizendo que os pacientes internados pediam que fosse ele a lhes dar as
infeções. Ele dizia para mim que tratava os doentes como se fossem pessoas da
família dele. O Pedro morreu há 16 anos.
Como eu queria
aprender coisas novas porque eu não estudei, pois morava no sítio, eu consegui
retirar livros da biblioteca do SESC da cidade. Aos poucos meus filhos foram
adquirindo o hábito da leitura. E como era bom! Fazia o serviço de casa,
almoço, louça depois íamos, do mais velho ao mais novo fazermos leitura. Todos nós
líamos e conversávamos sobre as histórias lidas. Sem família, O Pequeno Lord, Meu pé de laranja lima, Uma casa na
campina, Korak, o filho de Tarzan, enfim estávamos sempre às voltas com a
leitura. Éramos e somos felizes. Embora a cidade fosse pequena um acontecimento
nos deixou muito tristes, que foi o assassinato da menina Cleuzinha. Não gosto
muito de rememorar esses fatos porque abalaram a cidade toda. Na Santa Casa,
meu marido ficou trabalhando até muito tarde porque eram muitas as pessoas
feridas: parecia uma praça de guerra”.
A Sra. Ana deu ainda muitos
detalhes sobre o assassinato dessa menina, que puderam ser confirmados nas
notícias de Jornais, no entanto, não nesse texto, esse aspecto não será focado,
visto que outros do mesmo Grupo de Pesquisa já o fazem. O que vale marcar é que
na noite do domingo que a Sra. Ana atendeu os entrevistadores, ela foi
hospitalizada com a pressão alta, devido às emoções da lembrança. Hoje, ela
passa muito bem e está feliz com a apresentação do trabalho. Mostrou-se
interessada em ler o texto e fez as suas próprias correções.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse artigo se propôs
inicialmente a apresentar um relato oral de uma senhora em busca das memórias
da cidade de Cornélio Procópio. Em nenhum momento houve a pretensão de
transformar o seu relato em um texto acadêmico, visto que foram respeitados os
seus limites e também foi considerado que, o fato de ela não estar diante do
próprio texto, não houve a possibilidade de retocá-lo, de apurá-lo e de
ajustá-lo, enfim, ao gosto dos mais puristas.
“A memória é um
cabedal infinito do qual só registramos um fragmento” (BOSI: 1994, p. 39), e no
relato da Sra. Ana, os acontecimentos surgiam como em “flashes”, porém o viés é
o de uma senhora, dona de casa que pouco contato teve com as letras. No
entanto, o seu hábito de leitura e a sua vontade em fazer diferente o seu
derredor, transformou-a em uma pessoa que desliza entre os ambientes dos mais
variados sem constrangimento algum. A partir de seu relato, foi possível
verificar e constatar alguns aspectos da vida de antigamente. Um tempo em que
os vizinhos se visitavam, os compadres eram responsáveis pelos filhos, caso
faltasse um cônjuge. Um tempo que não volta mais, porém permanece vivo na
memória dos idosos e daqueles que, ainda que pouco, vivenciaram épocas de
outrora.
As tardes frias e a
ventania da cidade, os eventos religiosos, o cuidado com os filhos e os
acontecimentos sociais que marcaram a vida da Sra. Ana juntam-se às outras
pesquisas e constroem um mosaico de citações, como requer Kristeva (1974), no
qual vislumbra-se um mesmo acontecimento, por vezes visto por outro viés. É
disso que a vida é feita. É assim que se constrói a história.
Enfim, ao término
desse artigo, lança-se mão de uma citação de Bosi (1994), na qual,
sensivelmente descreveu sobre a última etapa da vida: a velhice:
Integrados em
nossa geração, vivendo experiências que enriquecem a idade madura, dia virá em
que as pessoas que pensam como nós irão se ausentando, até que poucas, bem
poucas, ficarão para testemunhar nosso estilo de vida e de pensamento. Os jovens
nos olharão com estranheza, curiosidade; nossos valores mais caros lhes
parecerão dissonantes e eles encontrarão em nós aquele olhar desgarrado com
que, às vezes, os velhos olham sem ver, buscando amparo em coisas distantes e
ausentes (BOSI, 1994: 75).
BIBLIOGRAFIA
BOSI, Ecléa. Memória e
Sociedade – Lembranças de Velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1994.
COUTINHO, Afrânio. A
Literatura no Brasil. Vol. 1 – 6. ed. São Paulo: Global, 2003.
KRISTEVA, Julia. Introdução
à semanálise. Trad. Lúcia Helena França. São Paulo: Perspectiva S.A., 1974.
MOREIRA, Maria Eunice. (org) História
da literatura: teorias, temas e autores. Porto alegre: Mercado Aberto,
2003.
[1]
Inês Cardin Bressan é docente da FACCRREI/FACED, Mestre pela Universidade
Estadual Paulista e Doutoranda pela mesma Instituição. Participa do Grupo de
Pesquisa EDITEC