terça-feira, 27 de maio de 2014

XV Semana de História- UENP- Jacarezinho- 2013


MEMÓRIAS PROCOPENSES, UM CABEDAL INFINITO DE INFORMAÇÕES: DEPOIMENTO DA SRA. ANA MARIA CARDIN

Profa. Ma. Inês Cardin Bressan[1]
Flávia Taciane do Nascimento[2]
Joana Pereira Repinaldo[3]


Resumo: O projeto Evocações do Passado: Memórias de Procopenses, desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa EDITEC – da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, traz à lume histórias de pessoas que nunca tiveram a pretensão de serem escritoras, mas que, através de seus relatos, estão resgatando a memória da cidade de Cornélio Procópio, com enfoque em aspectos da cultura da região. Desse modo, apresentamos nesse artigo a entrevista com a dona de casa Ana Maria Cardin, que, com seus oitenta e um anos, ainda guarda nitidamente acontecimentos de sua vida, expostos neste texto, e que fazem parte de eventos vividos também por outros munícipes.

Palavras-chave: História Oral. Memórias. Relatos. Ana Maria Cardin.

INTRODUÇÃO


Este artigo é um estudo sobre as memórias procopenses, com foco especial em uma de suas moradoras, a Sra. Ana Maria Cardin. Ele é resultado de um trabalho realizado pelas pesquisadoras supracitadas, a fim de resgatar a memória da cidade de Cornélio Procópio – Pr, que faz parte do conjunto de trabalhos realizados pelo Grupo de Pesquisa EDITEC, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Criado em 2008, o grupo EDITEC tem como foco estudos sobre as relações entre educação, sociedade, arte e tecnologia, com as linhas de pesquisa: Diálogos Culturais; Educação profissional e trabalho. Ao longo desse período foram realizados alguns trabalhos e projetos e entre eles está o “Evocações do Passado: memórias de procopenses”, que busca justamente resgatar a memória das pessoas que viveram e ainda vivem nessa cidade.
Justifica o seu desenvolvimento, o fato de haver certa necessidade de se conhecer o espaço em que se vive, e é através da história que se resgata a memória e a vida de uma sociedade. Seu objetivo é trazer à luz alguns dos modelos de vida de épocas passadas, cujos moradores ainda estão vivos e mostrar que a narração de um fato, seja ele histórico ou não, é capaz de resgatar a memória de um povo, perpetuá-la e também emocionar os agentes envolvidos nela. Por isso, esse artigo se dispôs a relatar a história da Sra. Ana Maria Cardin e, através dele foi possível conhecer melhor como se enredava a vida das pessoas há quarenta anos, bem como tomar ciência de como elas se organizavam dentro da cidade de Cornélio Procópio, sob o viés de uma moradora, que havia recentemente chegado aqui e construía uma família. Desse modo, a partir da literatura oral que se edifica e atrai novos pesquisadores, foi exposta aqui a experiência de uma senhora de oitenta anos.
Segundo Coutinho (2003), a literatura oral, além de existir em todas as bibliografias, é o elemento vivo e harmonioso que envolve a criança e acompanha, sem cessar, o homem, num eco de memória e saudade. O autor considera todos os seres humanos como portadores de material rico e complexo, recolhido durante toda a vida, desde a infância até a maturidade, arquivado na mente de cada um. A história contada e recontada durante muitas gerações sofre modificações, por isso a importância de projetos que retomam a memória e buscam a história de personagens, muitas vezes, desconhecidas.

D. ANA MARIA CARDIN: ACONTECIMENTOS SOB OS QUAIS A VIDA ACONTECE


Ao enriquecer uma pesquisa com depoimentos de pessoas idosas, consequentemente atribuímos valor à sua memória e, essa atribuição funciona como mola propulsora para o resgate da vida. Normalmente, os velhos não são muito bem integrados à vida moderna e é na família, construída por ele, que acaba encontrando um espaço para ficar e acomodar a sua vida. Não é difícil encontrar aqueles que moram com os filhos, outros que insistem em sustentar suas atividades morando sozinhos, ou aqueles que foram relegados a asilos ou casas de repouso. A juventude, ansiosa pela vida, desfavorece os idosos e poucos consideram suas opiniões, suas falas e suas memórias.
A velhice, decurso fatal daqueles que não morrerem jovens, é tão desvalorizada que chega a assustar os mais destemidos. Muitas vezes, abandonados nos asilos pela própria família, o idoso já não possui papel ativo. Ele se resigna na sua condição passiva.
Segundo Bosi (1994, p. 83), “o velho é alguém que se retrai de seu lugar social e este encolhimento é uma perda e um empobrecimento para todos. Então, a velhice desgostada, ao retrair suas mãos cheias de dons, torna-se uma ferida no grupo”. No entanto, há aqueles idosos que, integrados na vida familiar, convivem harmoniosamente com a sua geração. E são por vezes, sob a visão dos jovens, estranhos e curiosos porque passam muito tempo com o olhar absorto, aquele olhar sem ver, que insiste em buscar amparo em abstrações e ausências.
A faculdade de escutar esvaiu-se no mundo moderno. Todos querem falar, todavia o escutar é para poucos. Por isso, entre o ouvinte e o narrador nasce uma relação de intimidade, pois as lembranças narradas mostram não apenas fatos, mas memórias silenciadas pelo tempo que passou e pelo desinteresse da juventude. Uma das formas de preservar as memórias e a história da literatura é o gênero narrativo, pois através dele se perpetuam as histórias que a vida ofereceu e oferece.
A narração, forma artesanal de comunicação, tece o acontecido até atingir a forma desejada. A história precisa ser narrada e desse modo passada de geração a geração e gerar tantas outras prolongando o original tecidas por outras mãos, por outros dedos, por outros lábios. “A arte de narrar é uma relação alma, olho e mão: assim transforma o narrador sua matéria, a vida humana” (BOSI, 1994, p.90).
Foi em uma tarde amena de abril que a Sra. Ana Maria nos recebeu em sua casa. A entrevista prolongou-se por toda a tarde, mas o tom acolhedor da residência, associado aos crochês das toalhinhas dispostas, nos remeteram a um tempo de infância que já não volta mais. A boa integração com filhos e netos manteve nela a alegria de viver e um sorriso contagiante. Sentamo-nos no escritório e ela, um pouco ansiosa, aguardava as perguntas, não antes de nos oferecer uma xícara (ou chávena?) de chá. Após o chá e explanado mais ou menos qual seria o viés da entrevista, ela iniciou a narrativa.
“Vim para Cornélio Procópio em 1952, sou natural de Guaiçara – SP e em 1954 me casei com Pedro Cardin. A cidade não possuía asfalto e as ruas eram de uma terra tão vermelha que nos surpreendia. Provenientes do Estado de São Paulo, onde a terra era branca e o clima mais quente, assustávamo-nos com a ventania, com o frio e também com a poeira (risos). Juntamente com meu marido, vieram os ternos de linho branco que, após algumas voltas pela cidade, teimavam em parecer mais com marrom claro que propriamente brancos. A cidade deveria se chamar Ventania e não Cornélio Procópio (risos). As minhas roupas eram simples vestidos estampados de xadrez, floral e também eu não frequentava salão de beleza. Só para cortar os cabelos mesmo. Sempre cantei em casa fazendo o meu serviço. As músicas eram sacras voltadas para Jesus e Nossa Senhora. Certa vez, uma vizinha me disse que havia mudado perto dela uma família de passarinhos (risos).
Eu e o Pedro tivemos seis filhos e ele passou a maior parte do tempo de sua vida trabalhando na Santa Casa. Seu trabalho nos fez mais cuidadosos com os filhos, pois devido à nossa baixa escolaridade, tínhamos poucos conhecimentos sobre cuidados com a saúde, o que foi aprendido na função dele. Se faltavam conhecimentos em determinados campos, abundavam em outros: a religião e o carinho!
Meu marido era enérgico, bom esposo e bom pai. Religioso ao extremo e eu o amava por isso, não só por isso, mas pelo seu aspecto pedagógico que tinha em me ensinar. Aprendi muito com ele. Como vim de uma família um tanto quanto rude na criação dos filhos, tentei fazer diferente com os meus. E deu certo! (risos).
Nunca fui festeira. Nem eu nem o Pedro. Nosso divertimento era ir à Igreja, procissões, quermesses e visitávamos nossos vizinhos e compadres. Não havia ostentação, nem poderíamos, mas havia calor humano de sobra. Rezávamos o terço todos os dias (ainda rezo) e o fazíamos ajoelhados. Era bonito de se ver as crianças por vezes ajoelhadas fazendo as suas orações.
Íamos à igreja todos os domingos e eu ia quase todas as quartas assistir à novena da Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, na catedral, ou melhor, ainda era matriz. As procissões também eram belíssimas. Tinha a procissão de Corpus Christi, na qual enfeitávamos as ruas para passar o Santíssimo. Muitas vezes minhas filhas se vestiam de anjinhos para acompanhar a procissão, ou também para fazer a coroação de Nossa Senhora no mês de maio, com as Irmãs da Santa Casa. Eram momentos de muita riqueza espiritual e também familiar. Em Corpus Christi, as ruas eram enfeitadas e a procissão dava volta no Cristo e retornava para a Catedral, voltávamos bem cansados, mas com a sensação plena que só a presença de Deus pode nos dar. O Pedro sempre ajudava nas missas, uma espécie de coroinha adulto, e nós ficávamos observando ele lá no altar junto com o padre. Como eu sempre gostei de cantar, eu cantava o dia todo fazendo o meu serviço. As músicas eram da Igreja, “Confio em Nosso Senhor”, músicas voltadas para Nossa Senhora e com o tempo meus filhos aprenderam também. Com a chegada de um toca discos em casa fomos adquirindo LPs de Padres que iniciavam suas vidas como cantores, como o Padre Zezinho, com o LP Ágape. Nossa afinidade com os sacerdotes sempre foi boa, acho que porque o Pedro teve um irmão Padre e ele foi muito importante para nós todos. Tanto que foi o Padre José Canziora que ajeitou o trabalho na Santa Casa para o meu marido.
O Pedro trabalhava de enfermeiro na Santa Casa e depois de muitos anos passou a fabricar soro. Ele era muito bom no que fazia. Puncionava veias como ninguém e era comum ele chegar a nossa casa dizendo que os pacientes internados pediam que fosse ele a lhes dar as infeções. Ele dizia para mim que tratava os doentes como se fossem pessoas da família dele. O Pedro morreu há 16 anos.
Como eu queria aprender coisas novas porque eu não estudei, pois morava no sítio, eu consegui retirar livros da biblioteca do SESC da cidade. Aos poucos meus filhos foram adquirindo o hábito da leitura. E como era bom! Fazia o serviço de casa, almoço, louça depois íamos, do mais velho ao mais novo fazermos leitura. Todos nós líamos e conversávamos sobre as histórias lidas. Sem família, O Pequeno Lord, Meu pé de laranja lima, Uma casa na campina, Korak, o filho de Tarzan, enfim estávamos sempre às voltas com a leitura. Éramos e somos felizes. Embora a cidade fosse pequena um acontecimento nos deixou muito tristes, que foi o assassinato da menina Cleuzinha. Não gosto muito de rememorar esses fatos porque abalaram a cidade toda. Na Santa Casa, meu marido ficou trabalhando até muito tarde porque eram muitas as pessoas feridas: parecia uma praça de guerra”.
A Sra. Ana deu ainda muitos detalhes sobre o assassinato dessa menina, que puderam ser confirmados nas notícias de Jornais, no entanto, não nesse texto, esse aspecto não será focado, visto que outros do mesmo Grupo de Pesquisa já o fazem. O que vale marcar é que na noite do domingo que a Sra. Ana atendeu os entrevistadores, ela foi hospitalizada com a pressão alta, devido às emoções da lembrança. Hoje, ela passa muito bem e está feliz com a apresentação do trabalho. Mostrou-se interessada em ler o texto e fez as suas próprias correções.

CONSIDERAÇÕES FINAIS


Esse artigo se propôs inicialmente a apresentar um relato oral de uma senhora em busca das memórias da cidade de Cornélio Procópio. Em nenhum momento houve a pretensão de transformar o seu relato em um texto acadêmico, visto que foram respeitados os seus limites e também foi considerado que, o fato de ela não estar diante do próprio texto, não houve a possibilidade de retocá-lo, de apurá-lo e de ajustá-lo, enfim, ao gosto dos mais puristas.
“A memória é um cabedal infinito do qual só registramos um fragmento” (BOSI: 1994, p. 39), e no relato da Sra. Ana, os acontecimentos surgiam como em “flashes”, porém o viés é o de uma senhora, dona de casa que pouco contato teve com as letras. No entanto, o seu hábito de leitura e a sua vontade em fazer diferente o seu derredor, transformou-a em uma pessoa que desliza entre os ambientes dos mais variados sem constrangimento algum. A partir de seu relato, foi possível verificar e constatar alguns aspectos da vida de antigamente. Um tempo em que os vizinhos se visitavam, os compadres eram responsáveis pelos filhos, caso faltasse um cônjuge. Um tempo que não volta mais, porém permanece vivo na memória dos idosos e daqueles que, ainda que pouco, vivenciaram épocas de outrora.
As tardes frias e a ventania da cidade, os eventos religiosos, o cuidado com os filhos e os acontecimentos sociais que marcaram a vida da Sra. Ana juntam-se às outras pesquisas e constroem um mosaico de citações, como requer Kristeva (1974), no qual vislumbra-se um mesmo acontecimento, por vezes visto por outro viés. É disso que a vida é feita. É assim que se constrói a história.
Enfim, ao término desse artigo, lança-se mão de uma citação de Bosi (1994), na qual, sensivelmente descreveu sobre a última etapa da vida: a velhice:

Integrados em nossa geração, vivendo experiências que enriquecem a idade madura, dia virá em que as pessoas que pensam como nós irão se ausentando, até que poucas, bem poucas, ficarão para testemunhar nosso estilo de vida e de pensamento. Os jovens nos olharão com estranheza, curiosidade; nossos valores mais caros lhes parecerão dissonantes e eles encontrarão em nós aquele olhar desgarrado com que, às vezes, os velhos olham sem ver, buscando amparo em coisas distantes e ausentes (BOSI, 1994: 75).


BIBLIOGRAFIA


BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade – Lembranças de Velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. Vol. 1 – 6. ed. São Paulo: Global, 2003.

KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Trad. Lúcia Helena França. São Paulo: Perspectiva S.A., 1974.

MOREIRA, Maria Eunice. (org) História da literatura: teorias, temas e autores. Porto alegre: Mercado Aberto, 2003.

MISCELÂNEA (Faculdade de Ciências e Letras de Assis) Teoria Literária - Periódicos, Assis, SP, v. 2 1995.



[1] Inês Cardin Bressan é docente da FACCRREI/FACED, Mestre pela Universidade Estadual Paulista e Doutoranda pela mesma Instituição. Participa do Grupo de Pesquisa EDITEC
[2] Flávia Taciane do Nascimento – estudante de Engenharia da UTFPR-CP/GP EDITEC
[3] Joana Pereira Repinaldo - estudante de Engenharia da  UTFPR-CP/GP EDITEC

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